Nuno Pinto da Cruz nasceu no Porto e entretanto passou por Inglaterra, França e Bélgica, onde vive há quatro anos. Foi de Bruxelas que nos enviou este testemunho que publicamos integralmente:
Portugal tem poucas razões para sorrir, mas uma delas é a nossa relação com a comida. Consta que a tristemente célebre troika ficou chocada ao ver tantos seres terceiro-mundistas com o privilégio de comer decentemente à hora do almoço.
Portugal tem poucas razões para sorrir, mas uma delas é a nossa relação com a comida. Consta que a tristemente célebre troika ficou chocada ao ver tantos seres terceiro-mundistas com o privilégio de comer decentemente à hora do almoço.
A ideia de «comer decentemente», apesar de ser alterável local e regionalmente, é suficientemente universal para percebermos que, a norte dos Pirenéus, a hora do almoço não é mais do que uma pausa técnica, um instante de descanso entre a manhã e a tarde de trabalho. Toda a noção de prazer é posta de lado. A meia hora do repasto serve a absorver as calorias e nutrientes exactamente necessárias a um bom rendimento laboral. Nem mais, nem menos, cambada de preguiçosos.
Ora, uma refeição quente no restaurante familiar ao fundo da rua, complementada por um copo de vinho tinto da casa e rematada pela sobremesa do dia, não entra nessa definição. Aqui, na Europa que os portugueses, através de algum raciocínio misterioso, chamam de “civilizada”, a escolha repousa em duas hipóteses possíveis : uma sandes ou comida feita em casa. Tudo o que saia destas variáveis revela um apetite luxuoso e caro, incompreensível para estes povos estranhos que não estão habituados a fazer da vida um longo momento agradável.
A sandes pode ser comprada em todo o lado. Infelizmente, muitos belgas a quem as papilas gustativas já disseram adeus há muito tempo, afundadas em cerveja de má qualidade, optam por ir buscar a sandes da hora do almoço ao pior franchising da já trágica história dos mesmos, a Panos: rectângulos amarelos daquilo a que eles chamam, por aproximação, “queijo”, por cima de um pobre e pálido fiambre, decoradas por uma espécie de alface de plástico, tudo isto num pão que mesmo os condenados do gulag recusariam por uma questão de dignidade.
Um dos grandes clássicos belgas é a massa bolonhesa, também cozinhada em versões mais complexas (lasanhas, por exemplo). Este é o segundo grande mistério do meu texto: a que se deve a paixão dos belgas pelos pratos mais banais da vasta comida italiana? Em várias marmitas belgas descobrirão variantes das mesmas.
Se se quiserem explorar os bas-fonds dos hábitos culturais deste país, então convém experimentar um fritkot, referência civilizacional equivalente à barraquinha das bifanas mas bastante mais deprimente. Uma parte não negligenciável da população vai alimentar-se nesses lugares demoníacos onde uma espessa camada de gordura recobre paredes e epidermes. As refeições são equilibradas: metade batata-frita, metade maionese. Por vezes pede-se uma cervela, uma fricadelle, um bicky, uma mitraillette. Este é o vocabulário da perdição calórica. Almas sensíveis, prefiram passar ao largo.
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